Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC!
Tenho feito duras críticas ao Projeto do novo CPC. Desde o início, pareceu-me que a sua estrutura apostava em uma espécie de commonlização. Minhas críticas, entretanto, conseguiram abrir um interessante diálogo com Fredie Didier, Dierle Nunes e outros juristas importantes envolvidos com o Projeto. O relator na Câmara Federal, deputado Paulo Teixeira (PT-SP), tem se mostrado competente e sensível às sugestões de melhoria do Projeto. Ajuda muito o fato de o deputado ser mestre em Direito e ter cursado parte da faculdade de filosofia. Somando tudo isso, houve um grande avanço. Não é o projeto ideal, mas melhorou. O real sempre é uma cópia imperfeita do ideal, advertiria Platão.
Assim, o Projeto, nesse novo contexto de acatamento de sugestões, adota uma melhor disciplina das técnicas alternativas — mediação, conciliação, com sua profissionalização e delineamento de um modelo multi-portas, na adoção do contraditório dinâmico (artigo 10 — que eu já havia elogiado) e um detalhamento nas exigências de fundamentação e a adoção de uma criteriologia no uso da jurisprudência.
Um ponto importantíssimo foi a aceitação por parte do relator da introdução de um novo parágrafo no artigo 521 do Projeto (talvez sejam inclusos outros). Por esse novo preceito, “O órgão jurisdicional observará o disposto no artigo 10 e no artigo 499, parágrafo 1º, na formação e aplicação do precedente judicial”. Bingo. Trata-se da adoção do contraditório como garantia de influência e não surpresa. Vejamos o que diz o artigo 10 de que fala o aludido parágrafo 11: “Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício.” E o que diz o artigo 499? São elementos essenciais da sentença:
I — o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II — os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III — o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
Parágrafo 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I — se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II — empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III — invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV — não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V — se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI — deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Parágrafo 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada.
Parágrafo 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
Veja-se: a crítica que eu fazia de que apenas o “andar de baixo” estava obrigado a cumprir a criteriologia e apenas estes (juízes e tribunais não superiores) estavam obrigados a seguir a jurisprudência, agora está sanada, porque o “andar de cima” está jungido a sua própria jurisprudência. E não poderá mudá-la a seu talante. Vitória da hermenêutica e da democracia.
Outro ponto importante — e que constava de minha crítica — era sobre a obrigação dos tribunais manterem a estabilidade da jurisprudência. Dizia eu que a estabilidade é diferente da integridade e da coerência do Direito, pois a “estabilidade” é um conceito autorreferente, isto é, numa relação direta com os julgados anteriores. Já a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso. Pois muito bem. A inteligência do relator e de Fredie Didier foram cruciais para o acatamento de uma sugestão de caráter dworkiniano, simples, mas que poderá mudar a história da aplicação do direito deterrae brasilis: trata-se da exigência de coerência e integridade, ao lado da estabilidade. Explico: Coerência significa dizer que, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Haverá coerência se os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mas, mais do que isto, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte dos juízes. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir do círculo hermenêutico. Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin[1]: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade limita a ação dos juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade.[2]
Mas há mais. O novo Projeto avançou, a partir da adoção do policentrismo e coparticipação no processo.[3] Consequentemente, a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado “coparticipação”, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do “livre convencimento”.
A história mostrará a importância desse gesto do relator e a sensibilidade dos processualistas que acompanham de perto o Projeto. Conseguir romper com o mito de “Oskar Bülow” é um salto em direção ao futuro. Livrar o processo civil das amarras do instrumentalismo presente em Carnelutti, Couture, Liebman etc, é olhar para o futuro. Mais do que isto, é entender o papel da história e das possibilidades de deixar para trás aquilo que foi importante, mas que se perdeu em face das alterações paradigmáticas que se produziram na filosofia e no direito. Se Bülow e Klein apostaram, no século XIX, no protagonismo judicial para a recepção do direito romano, isto não quer dizer que isso que propalou — porque o primeiro era adepto do Movimento do Direito Livre — pode(ria) ainda hoje ser útil em tempos de fortalecimento da autonomia do direito e da produção democrática da legislação. Isto é, efetivamente, alvissareiro.
Agregue-se as amarras feitas aos embargos de declaração, que já não serão os mesmos de antanho. Penso que, também nesse ponto, nada será como antes. Não conseguimos tirá-los. Mas, ao menos, haverá uma doutrina dos embargos, coisa que até hoje não houve.
Não posso deixar de registrar outro grande avanço, representado pela adoção da ordem cronológica de julgamentos, para prolação de sentenças e acórdãos, posto no artigo 12 do projeto, com previsão de que a lista de processos aptos a julgamento esteja permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e na rede mundial de computadores (parágrafo 1º.). Talvez seja um dos dispositivos mais republicanos do Projeto. Ponto para a democracia. Não creio que alguém possa ser contra uma inclusão desse jaez, reivindicação histórica das partes.
Com efeito, o dispositivo busca uma aplicação precisa da impessoalidade e transparência, obstando a escolha e modificação da ordem de julgamentos por variadas razões. Esse dispositivo representa uma blindagem contra qualquer influência na alteração da ordem dos feitos.
Ademais, o dispositivo do artigo 12 permitirá a verificação de quem são os bons juízes, que julgam processos simples e complexos sem preferências e sem preocupação tão só com sua produtividade, além daquelas legais e fruto de hipóteses de urgência, já devidamente pontuadas no seu parágrafo 2º, pelo qual estão excluídos da regra do caput do artigo 12: I — as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido; II — o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos; III — o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas; IV — as decisões proferidas com base nos artigos 495 e 945; V — o julgamento de embargos de declaração; VI — o julgamento de agravo interno; VII — as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça; VIII — os processos criminais, nos órgãos jurisdicionais que tenham competência penal; IX — a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada. Portanto, não se diga que o artigo 12 poderia obstaculizar os feitos de urgência. Estes têm previsão específica no Projeto.
Espera-se que o dispositivo, em sua redação final, não sofra flexibilizações que permitam aos juízes a quebra da previsibilidade dessa ordem dos julgamentos, tão necessária em um sistema processual com tamanhas taxas de congestionamento e no qual a espera do julgamento é, hoje, longa e de data incerta.
Numa palavra final.
Vivemos um momento histórico. O novo Código, aprovado com tais alterações, propiciará o surgimento de uma nova doutrina. Sim, uma nova doutrina que propiciará a construção de uma gramática narrativa das condições de possibilidade da aplicação do direito. A doutrina, com isso, voltará a doutrinar.
Nos últimos tempos, a doutrina tem assumido uma postura passiva diante dos tribunais. Veja-se, por exemplo, que houve pouquíssima reação à humilhação que a doutrina sofreu quando em um acórdão do STJ o ministro Humberto Gomes de Barros disse (AgReg em ERESP 279.889-AL): "Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. (...).”
Foi um “mico” histórico da doutrina. Fui o primeiro a protestar (http://www.ihj.org.br/bh/coluna_detalhes.asp?id=77). Mas as reações foram tímidas. Simbolicamente, esse acórdão representa no que virou a doutrina. Pois o novo Código, se aprovado com essas alterações acima elencadas, abrirá o espaço para a doutrina assumir um papel de protagonista, fazendo aquilo que venho pregando de há muito: a de “constranger epistemologicamente” juízes e tribunais da República. Ou seja, trata-se da possibilidade de republicanizar a doutrina. E ela voltar a fazer jus ao seu nome: Doutrina, que quer dizer “doutrinar”. E não caudatária de decisões tribunalícias e fábrica de verbetes e ementários elaborados pela valorosa classe dos estagiários.
Esperemos que o projeto seja aprovado nestes termos. Vencerá a democracia, o Estado Democrático de Direito e, fundamentalmente, a comunidade jurídica.
[1] Cf. Dworkin, Ronald. O Império do Direito. São Paulo, Quatier Latim, 2008, op. cit., p. 213.
[2] Integridade e coerência são dois princípios que incorpo em minha teoria da decisão, conforme se pode ver em Verdade e Consenso (Saraiva, 2011) e Jurisdição Constitucional e Decisão Juridica (RT, 2013).
[3] Nunes, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.
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