Leia a íntegra do voto do ministro Celso de Mello no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 631102, realizado no dia 27 de outubro, no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, a Corte discutiu a aplicação da chamada Lei da Ficha Limpa aos casos de inelegibilidade por renúncia a mandado eletivo com o objetivo de afastar cassação.
O ministro Celso de Mello votou pelo provimento do recurso, considerando o artigo 16 da Constituição, segundo o qual a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data da sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
27/10/2010 TRIBUNAL PLENO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 631.102 PARÁ
V O T O
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O exame da presente
causa – em cujo âmbito renova-se o debate em torno da aplicabilidade
imediata da Lei Complementar nº 135/2010 (CF, art. 16) e da alegada
transgressão ao postulado constitucional que veda a irretroatividade
das leis (CF, art. 5º, XXXVI), notadamente quando estas,
qualificadas como de ordem pública, restringem, gravemente, direitos
fundamentais (como a liberdade de participação política) – impõe
algumas reflexões que ainda considero imprescindíveis à exata
compreensão e à adequada análise da controvérsia jurídico-
-constitucional motivada pela edição da denominada “Lei da Ficha
Limpa”, tal como tive o ensejo de expor quando da realização do
julgamento do “Caso Roriz” (RE 630.147/DF).
Salientei, então, Senhor Presidente, em referido
julgamento plenário, que a desejável convergência entre ética e
política nem sempre tem ocorrido ao longo do processo histórico
brasileiro, cujos atores, ao protagonizarem episódios lamentáveis e
moralmente reprováveis, parecem haver feito uma preocupante opção
preferencial por práticas de poder e de governo que se distanciam,
gravemente, do necessário respeito aos valores de probidade, de
RE 631.102 / PA
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decência, de impessoalidade, de compostura e de integridade pessoal
e funcional.
Tais comportamentos, porque motivados por razões
obscuras, por desígnios inconfessáveis ou por interesses escusos, em
tudo incompatíveis com a causa pública, são guiados e estimulados
por exigências subalternas resultantes de um questionável
pragmatismo político, que, não obstante o profundo desvalor ético
dos meios empregados, busca justificá-los, assim mesmo, em face de
uma suposta e autoproclamada legitimidade dos fins visados pelos
governantes.
Os membros de Poder, quando assim atuam, transgridem as
exigências éticas que devem pautar e condicionar a atividade
política, que só se legitima quando efetivamente respeitado o
princípio da moralidade, que traduz valor constitucional de
observância necessária na esfera institucional de qualquer dos
Poderes da República.
A ordem jurídica não pode permanecer indiferente a
condutas de quaisquer autoridades da República que hajam
eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos no desempenho
da elevada função de representação política do Povo brasileiro.
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O sistema democrático e o modelo republicano não
admitem, nem podem tolerar a existência de regimes de governo sem a
correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade, que
representam fatores de preservação da ordem democrática e que
constituem elementos de concretização da ética republicana, por cuja
integridade todos, sem exceção, devemos velar, notadamente aqueles
investidos – ou que pretendam investir-se – em mandatos
representativos, quer no âmbito do Poder Executivo, quer na esfera
do Poder Legislativo.
Presente tal contexto, Senhor Presidente, torna-se
essencial reconhecer que a Justiça Eleitoral tem o dever-poder de
obstar candidaturas de pessoas desprovidas de idoneidade e
destituídas de probidade e que, por isso mesmo, hajam incidido em
situações configuradoras de inelegibilidade, desde que compatíveis
com a ordem constitucional, em ordem a viabilizar, ao cidadão, o
exercício do direito de escolher pessoas dignas e probas para o
desempenho do mandato eletivo.
Na realidade, a gestão republicana do poder, a composição
dos corpos legislativos e a escolha, em processo eleitoral, dos órgãos
de direção política do Estado expõem-se, em plenitude, aos postulados
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ético-jurídicos da probidade e da moralidade e representam exigência
incontornável imposta pela ordem democrática.
Inquestionável, desse modo, a alta importância da vida
pregressa dos candidatos, pois a probidade pessoal e a moralidade
administrativa representam valores que consagram a própria dimensão
ética em que necessariamente se deve projetar a atividade pública.
Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que
o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por
legisladores probos e por juízes incorruptíveis, que desempenhem as
suas funções com total respeito aos postulados ético-jurídicos que
condicionam o exercício legítimo da atividade pública. O direito ao
governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo - traduz uma
prerrogativa insuprimível da cidadania.
Tenho reconhecido, por isso mesmo, que a probidade e a
moralidade traduzem pautas interpretativas que devem reger
o processo de formação e composição dos órgãos do Estado,
observando-se, no entanto, as cláusulas constitucionais cuja
eficácia subordinante conforma e condiciona, qualquer que seja a
dimensão de sua atuação, o exercício dos poderes estatais.
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A defesa dos valores constitucionais da probidade
administrativa e da moralidade para o exercício do mandato eletivo
traduz medida da mais elevada importância e significação para a vida
política do País.
Eis porque o sistema democrático e o modelo republicano
consagram, como fórmula legitimadora do exercício do poder, o
direito do cidadão à plena informação sobre a vida pregressa dos
candidatos, especialmente se se tratar da escolha, em processo
eleitoral, daqueles que irão, como membros do Poder Legislativo ou
do Poder Executivo, co-participar da regência e da direção superior
do Estado, incumbindo à Justiça Eleitoral, com apoio em legislação
compatível com a Constituição, impedir que se transgridam os
postulados da probidade e da moralidade.
A plena submissão de todos os candidatos aos princípios
que derivam da ética republicana e a integral exposição de seu
comportamento individual, profissional e social, inclusive de sua
vida pregressa, a amplo escrutínio público qualificam-se como
requisitos essenciais à própria legitimidade do processo eleitoral,
ao mesmo tempo em que se permitirá à Justiça Eleitoral a efetivação
dos comandos legais e constitucionais que obstem o registro de
candidaturas de pessoas desprovidas de idoneidade.
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Assentadas tais premissas, que põem em especial
destaque a probidade administrativa e a moralidade para o exercício
do mandato representativo, qualificados como vetores que asseguram a
normalidade e garantem a legitimidade das eleições, cabe examinar a
controvérsia ora suscitada na presente sede recursal extraordinária.
Trata-se, como já referido neste julgamento, de recurso
extraordinário interposto por Jader Fontenelle Barbalho contra
decisão, que, proferida pelo E. Tribunal Superior Eleitoral, em
processo de que foi Relator o eminente Ministro ARNALDO VERSIANI,
acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado:
“Inelegibilidade. Renúncia.
Aplicam-se às eleições de 2010 as inelegibilidades
introduzidas pela Lei Complementar nº 135/2010, porque
não alteram o processo eleitoral, de acordo com o
entendimento deste Tribunal na Consulta nº 1120-
-26.2010.6.00.0000 (rel. Min. Hamilton Carvalhido).
As inelegibilidades da Lei Complementar nº 135/2010
incidem de imediato sobre todas as hipóteses nela
contempladas, ainda que o respectivo fato seja anterior
à sua entrada em vigor, pois as causas de
inelegibilidade devem ser aferidas no momento da
formalização do pedido de registro da candidatura, não
havendo, portanto, que se falar em retroatividade da
lei.
Tendo renunciado ao mandato de Senador após o
oferecimento de denúncias capazes de autorizar a
abertura de processo por infração a dispositivo da
Constituição Federal, é inelegível o candidato para as
eleições que se realizarem durante o período
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remanescente do mandato para o qual foi eleito e nos
8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura,
nos termos da alínea ‘k’ do inciso I do art. 1º da Lei
Complementar nº 64/90, acrescentada pela Lei
Complementar nº 135/2010.
Não compete à Justiça Eleitoral examinar a
tipicidade do fato que deu origem à renúncia, para
verificar se o Senador sofreria, ou não, a perda de seu
mandato por infração a dispositivo da Constituição
Federal.
Recurso ordinário provido.” (grifei)
O ora recorrente busca o reconhecimento da
inaplicabilidade, à espécie, do art. 1º, inciso I, alínea “k”,
da Lei Complementar nº 64/90, na redação dada pela Lei
Complementar nº 135/2010, que incluiu, dentre outras causas de
inelegibilidade, a renúncia ao mandato, manifestada por determinados
membros do Poder Legislativo e do Poder Executivo, “desde o
oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a
abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição
Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito
Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se
realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual
foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da
legislatura” (grifei).
Sustenta-se, na presente sede processual, dentre outras
alegações, que o Tribunal Superior Eleitoral teria violado o
princípio da anterioridade da lei eleitoral (CF, art. 16) e o
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postulado da irretroatividade da lei em face do ato jurídico
perfeito (CF, art. 5º, XXXVI).
Alega-se, no recurso extraordinário ora em exame, que o
E. Tribunal Superior Eleitoral, ao julgar aplicáveis, às
eleições de 2010, as inelegibilidades introduzidas pela Lei
Complementar nº 135/2010, fazendo-o sob o fundamento de que referido
diploma legislativo não alteraria o processo eleitoral, ofendeu o
postulado da anterioridade da lei eleitoral inscrito no art. 16 da
Constituição da República, que assim dispõe:
“A lei que alterar o processo eleitoral entrará em
vigor na data de sua publicação, não se aplicando à
eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”
(grifei)
Tenho para mim, Senhores Ministros, tal como já o
fizera no julgamento do RE 630.147/DF, que se registra, na espécie,
com a interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral, efetiva
transgressão à cláusula constitucional que consagra o princípio da
anterioridade eleitoral.
Como se sabe, o legislador constituinte, atento à
necessidade de coibir abusos e casuísmos descaracterizadores da
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normalidade ou da própria legitimidade do processo eleitoral e
sensível às inquietações da sociedade civil, preocupada e indignada
com a deformante manipulação legislativa das regras eleitorais,
operada, arbitrariamente, em favor de correntes político-governamentais
detentoras do poder, fez inscrever, no texto constante do art. 16 de
nossa Carta Política, um postulado de irrecusável importância ético-
-jurídica, tal como tem sido reconhecido e proclamado por esta
Suprema Corte (ADI 353-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO –
ADI 3.345/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Torna-se imperioso reconhecer que a norma
consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que
consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo
destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido
teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do
processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente
introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária
igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas
relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com
inovações abruptamente estabelecidas - como aquelas que definem
novas hipóteses de inelegibilidade (que provocam a exclusão de
candidaturas) -, a garantia básica de igual competitividade que
deve, sempre, prevalecer nas disputas eleitorais.
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O texto normativo veiculado nessa regra constitucional,
ao dispor como o fez, diferiu, no tempo, o início da eficácia da
legislação inovadora do processo eleitoral.
Na realidade, a cláusula inscrita no art. 16 da
Constituição – distinguindo entre o plano da vigência da lei, de um
lado, e o plano de sua eficácia, de outro - estabelece que o novo
diploma legislativo, emanado do Congresso Nacional, embora vigente na
data de sua publicação, não se aplicará às eleições que ocorrerem em
até um ano contado da data de sua vigência, inibindo-se, desse modo,
a imediata plenitude eficacial das leis que, independentemente de seu
conteúdo material ou processual, alterarem o processo eleitoral.
Vê-se, portanto, que a norma inscrita no art. 16 da
Constituição impõe a análise de algumas categorias fundamentais da
teoria geral do direito, que distingue, referentemente aos atos
normativos – pois é o Congresso Nacional o destinatário precípuo do
princípio da anterioridade eleitoral -, três planos em que se
desenvolvem noções básicas a propósito do tema: (a) o plano da
existência da lei, que se instaura, segundo alguns, com a
promulgação desse ato estatal (CELSO RIBEIRO BASTOS, “Curso de
Direito Constitucional”, p. 314, 11ª ed., 1989, Saraiva) ou, segundo
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outros, com a sanção do respectivo projeto (JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES,
“Lei Complementar Tributária”, p. 40, 1975, RT/EDUC); (b) o plano da
validade da lei, cuja aferição decorre da compatibilidade, formal e
material, dessa espécie normativa com a Constituição e (c) o plano
da eficácia da lei, que se traduz em sua aptidão de gerar e produzir
todas as suas consequências de ordem jurídica.
Nesse contexto, o preceito referido, consubstanciado no
art. 16 da Carta Política, não impede, na matéria em questão, a
instauração do processo de formação de leis nem obsta a própria
edição desses atos estatais, cuja eficácia jurídica, no entanto,
ficará paralisada até que se opere o decurso do lapso de um ano a
contar de sua vigência.
Daí a correta observação de FÁVILA RIBEIRO
(“Pressupostos Constitucionais do Direito Eleitoral”, p. 93,
1990, Fabris Editor), para quem esse contingenciamento de ordem
jurídico-temporal imposto à atividade normativa do Poder
Legislativo, no plano do direito eleitoral, justifica-se plenamente:
“As instituições representativas não podem ficar
expostas a flutuações nos seus disciplinamentos, dentre
os quais sobrelevam os eleitorais, a que não fiquem ao
sabor de dirigismo normativo das forças dominantes de
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cada período, alterando-se as leis sem qualquer
resguardo ético, aos impulsos de eventuais
conveniências, em círculo vicioso, para impedir que as
minorias de hoje tenham legítima ascensão ao poder pelo
genuíno consentimento do corpo de votantes.” (grifei)
O que me parece irrecusável, desse modo, Senhor
Presidente, reafirmando, aqui, uma vez mais, o que precedentemente já
acentuei, é que a norma inscrita no art. 16 da Constituição da
República foi enunciada pelo constituinte - como o reconhece a
própria doutrina (PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição
Brasileira”, vol. 1, p. 317, 1989, Saraiva; MANOEL GONÇALVES FERREIRA
FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1,
p. 134, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à
Constituição Brasileira de 1988”, vol. II, p. 1.123, 1989, Forense,
v.g.) - com o declarado propósito de impedir a deformação do processo
eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas pelo
Poder Legislativo, aptas a romper a igualdade de participação dos que
nele atuam como protagonistas relevantes (as agremiações partidárias e
os próprios candidatos), lesando-lhes, assim, com inovações
abruptamente fixadas, a garantia básica de igual competitividade que
deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais.
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A teleologia da norma constitucional em causa foi bem
ressaltada por CELSO RIBEIRO BASTOS (“Comentários à Constituição do
Brasil”, vol. 2/596-597, 1989, Saraiva):
“(...). A preocupação fundamental consiste em que a
lei eleitoral deve respeitar o mais possível a
igualdade entre os diversos partidos, estabelecendo
regras equânimes, que não tenham por objetivo favorecer
nem prejudicar qualquer candidato ou partido. Se a lei
for aprovada já dentro do contexto de um pleito, com
uma configuração mais ou menos delineada, é quase
inevitável que ela será atraída no sentido dos diversos
interesses em jogo, nessa altura já articulados em
candidaturas e coligações. A lei eleitoral deixa de ser
aquele conjunto de regras isentas, a partir das quais
os diversos candidatos articularão as suas campanhas,
mas passa ela mesma a se transformar num elemento da
batalha eleitoral.
É, portanto, a ‘vacatio legis’ contida neste
art. 16, medida saneadora e aperfeiçoadora do nosso
processo eleitoral.” (grifei)
Para os autores já mencionados, a essência do princípio
constitucional da anterioridade da lei eleitoral reside,
fundamentalmente, no seu caráter moralizador, “que impede mudanças
‘ad hoc’ no processo eleitoral” (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO,
“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1, p. 134, 1990,
Saraiva), a que se associa, ainda, a natureza salutar do
preceito, “que busca proibir o casuísmo eleitoral, usado
durante a época do Estado autoritário (...)” (PINTO FERREIRA,
“Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1, p. 317, 1989,
Saraiva).
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Cabe referir, ante a precisão de seu entendimento, a
observação de WALTER CENEVIVA (“Direito Constitucional Brasileiro”,
p. 118, item n. 15, 3ª ed., 2003, Saraiva):
“Sempre com o mesmo objetivo, há norma especial
destinada a evitar o chamado ‘casuísmo’, consistente no
impedimento de modificações da lei que, criando
obstáculos à desejável rotatividade do seu exercício,
beneficiem os detentores do poder.
...................................................
A norma constitucional, na versão de 1993, excluiu
o período obrigatório de suspensão da vigência da lei,
mas manteve o duplo objetivo de impedir mudanças
constantes e de tornar conhecida a regra do jogo
eleitoral com suficiente antecedência, de modo a
igualar as oportunidades dos disputantes.” (grifei)
Se o princípio da anterioridade eleitoral, portanto,
tem por destinatário precípuo o próprio Poder Legislativo da União,
pois visa a diferir, no tempo, a própria carga eficacial do
ordenamento eleitoral regularmente positivado, cabe acentuar, por
necessário, que a função inibitória desse postulado só se instaurará
quando o ato normativo editado pelo Congresso Nacional, ainda que
veiculador de regras de direito material, importar em alteração do
processo eleitoral, pois o sentido maior de que se acha impregnado o
art. 16 da Constituição reside na necessidade de preservar-se uma
garantia básica assegurada, não só aos candidatos, mas, também,
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destinada aos próprios cidadãos, a quem assiste o direito de receber,
do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas
contra alterações abruptas das regras – materiais ou formais -
inerentes à disputa eleitoral.
Cabe rememorar, neste ponto, que o processo eleitoral,
que constitui sucessão ordenada de atos e estágios causalmente
vinculados entre si, supõe, em função dos objetivos que lhe são
inerentes, a sua integral submissão a uma disciplina jurídica que,
ao discriminar os momentos que o compõem, indica as fases em que ele
se desenvolve: (a) fase pré-eleitoral, que, iniciando-se com a
realização das convenções partidárias e a escolha de candidaturas,
estende-se até a propaganda eleitoral respectiva; (b) fase eleitoral
propriamente dita, que compreende o início, a realização e o
encerramento da votação e (c) fase pós-eleitoral, que principia com
a apuração e contagem (ou totalização) de votos e termina com a
diplomação dos candidatos eleitos, bem assim dos seus respectivos
suplentes.
Para ANTONIO TITO COSTA (“Recursos em Matéria
Eleitoral”, p. 113, item n. 7.2, 4ª ed., 1992, RT), o processo
eleitoral em si mesmo considerado - que tem, na diplomação, “o ponto
culminante de todo um sucessivo complexo de atos administrativosRE
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-judiciais” - constitui, na globalidade das etapas que o compõem, um
“iter” que “vai desde a escolha dos candidatos em convenção
partidária, até sua eleição, proclamação e diplomação” (grifei).
JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional
Positivo”, p. 377, item n. 20, 23ª ed., 2004, Malheiros), ao definir
o alcance e a extensão do procedimento eleitoral (e das fases que o
compõem), assinala:
“O procedimento eleitoral compreende uma sucessão
de atos e operações encadeadas com vista à realização
do escrutínio e escolha dos eleitos. Desenvolve-se em
três fases basicamente: (1) apresentação das
candidaturas; (2) organização e realização do
escrutínio; (3) contencioso eleitoral.” (grifei)
Definido, assim, de um lado, o sentido jurídico-
-constitucional da expressão processo eleitoral - que se inicia com
as convenções partidárias e a apresentação das candidaturas e termina
com o ato de diplomação - e identificada, de outro, a “mens” que deve
orientar o intérprete na exegese do princípio constitucional da
anterioridade da lei eleitoral proclamado no art. 16 da Carta
Política (a necessidade de impedir a utilização abusiva e casuística
do processo de elaboração das espécies normativas como instrumento de
manipulação e deformação dos pleitos eleitorais), torna-se forçoso
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concluir que a interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral,
no caso ora em exame, à regra de inelegibilidade fundada na
alínea “k” do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90, introduzida pela
LC nº 135, de 04/06/2010, fazendo-a aplicável, desde logo, às
eleições de 2010, implicou vulneração à cláusula constitucional em
questão.
Com efeito, tenho para mim que a Lei Complementar nº 135,
de 04/06/2010, que alterou regras materiais e formais inerentes ao
processo eleitoral, foi alcançada pela incidência restritiva do
postulado da anterioridade eleitoral, eis que mencionado diploma
legislativo - que entrou em vigor na data de sua publicação
(07/06/2010) – foi editado dentro do período constitucionalmente
vedado, dentro, portanto, do período a que alude o art. 16 da Carta
Política. Só se fez aplicável, desde logo, no curso do processo
eleitoral ora em andamento, impregnado de plena carga eficacial, por
força da interpretação inconstitucional que lhe deu o E. Tribunal
Superior Eleitoral, eis que sequer decorrido, quanto a tal diploma
legislativo, o prazo de um ano a que se refere o art. 16 da
Constituição da República.
Qualquer que seja o marco temporal a ser considerado na
espécie – início das convenções partidárias para escolha de
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candidatos (10/06/2010) ou, até mesmo, o dia da realização das
eleições (03/10/2010) -, o fato é que esses dois momentos, que
integram o conceito de processo eleitoral como estágios que lhe
compõem a estrutura, situam-se há menos de um ano da data em que
publicada a LC nº 135 (07/06/2010), editada, portanto, apenas
03 (três) dias antes do início das convenções partidárias ou
116 (cento e dezesseis) dias da data em que deverão ser realizadas
as eleições, a significar, desse modo, que não se observou, quanto
às profundas alterações introduzidas no estatuto das
inelegibilidades, a exigência constitucional da anualidade.
Tenho para mim, para os fins a que se refere o art. 16
da Constituição Federal, tal como compreendo o processo eleitoral e
os diversos estágios em que ele se desenvolve, que o seu momento
inaugural reside na data a partir da qual se permite, a qualquer
partido político, promover a escolha, em convenção partidária, dos
seus respectivos candidatos.
Todos sabemos que a Lei Geral das Eleições
(Lei nº 9.504/97) dispõe que “A escolha dos candidatos pelos
partidos e a deliberação sobre coligações deverão ser feitas no
período de 10 a 30 de junho do ano em que se realizarem as eleições,
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lavrando-se a respectiva ata em livro aberto e rubricado pela
Justiça Eleitoral” (art. 8º, “caput” - grifei).
Foi por tal razão que o E. Tribunal Superior Eleitoral,
ao expedir a Instrução nº 126, consubstanciada na Resolução nº 23.089,
aprovou o Calendário Eleitoral para as eleições de 2010, definindo o
dia 10 de junho de 2010, quinta-feira, como sendo o termo inicial da
fase pré-eleitoral, ou seja, a “Data a partir da qual é permitida a
realização de convenções destinadas a deliberar sobre coligações e
escolher candidatos a presidente e vice-presidente da República,
governador e vice-governador, senador e respectivos suplentes,
deputado federal, estadual ou distrital (...)” (grifei).
O cotejo entre os marcos temporais juridicamente
relevantes – a data de vigência da Lei Complementar nº 135/2010
(publicada em 07/06/2010), de um lado, e a data em que instaurado o
processo eleitoral, com a possibilidade de realização das convenções
partidárias para escolha dos respectivos candidatos (10/06/2010), de
outro – leva-me a reconhecer consumada a transgressão, por parte do
acórdão recorrido, ao princípio da anterioridade eleitoral inscrito no
art. 16 da Constituição da República.
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É por tal razão, e coerente com o entendimento que
expus nesta Suprema Corte, no julgamento plenário do RE 129.392/DF,
não obstante vencido, na honrosa companhia dos eminentes Ministros
MARCO AURÉLIO, ALDIR PASSARINHO, SEPÚLVEDA PERTENCE e
CARLOS VELLOSO, que tenho por inteiramente aplicável, à Lei
Complementar nº 135/2010, a cláusula de restrição temporal fundada
no art. 16 da Constituição da República, pois o princípio da
anterioridade eleitoral também incide sobre diplomas legislativos,
como o de que ora se trata, que estabeleçam, em caráter inovador,
normas eleitorais de conteúdo material.
Afigura-se-me inquestionável, Senhor Presidente, que
qualquer estatuto legislativo que introduza alterações – e
alterações tão significativas – no regime jurídico de
inelegibilidades, como o fez a novíssima LC nº 135/2010, interfere,
de modo direto, no processo eleitoral, na medida em que viabiliza a
exclusão e/ou a inclusão de candidatos na disputa por mandatos
eletivos, submetendo-se, por isso mesmo, à restrição de seu conteúdo
eficacial, quando ainda não decorrido o prazo de um ano estabelecido
pelo art. 16 da Constituição da República.
O significado da cláusula da anterioridade eleitoral
mostra-se tão relevante que nem mesmo o Congresso Nacional, pelo
RE 631.102 / PA
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exercício de seu poder de reforma, dispõe de autoridade para,
mediante emenda à Constituição, formular regras que transgridam o
art. 16 da Constituição da República, como já advertiu o Supremo
Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.685/DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE,
em decisão consubstanciada, no ponto, em acórdão assim ementado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA
EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA
SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO
TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO
PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16)
E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO
DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, ‘CAPUT’, E LIV).
LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE
REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF.
.....................................................
(...) 2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu
‘status’ constitucional à matéria até então integralmente
regulamentada por legislação ordinária federal,
provocando, assim, a perda da validade de qualquer
restrição à plena autonomia das coligações partidárias no
plano federal, estadual, distrital e municipal.
3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições
gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com
o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no
art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou
casuística do processo legislativo como instrumento de
manipulação e de deformação do processo eleitoral
(ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).
4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra
garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min.
Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa
garantia individual do cidadão-eleitor, detentor
originário do poder exercido pelos representantes eleitos
e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o
necessário grau de segurança e de certeza jurídicas
contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa
eleitoral’ (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).
RE 631.102 / PA
22
5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo,
elementos que o caracterizam como uma garantia
fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador
constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º,
e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda
afronta os direitos individuais da segurança jurídica
(CF, art. 5º, ‘caput’) e do devido processo legal (CF,
art. 5º, LIV).
6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em
nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental.
Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito
para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.
7. Pedido que se julga procedente para dar
interpretação conforme no sentido de que a inovação
trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após
decorrido um ano da data de sua vigência.” (grifei)
A conclusão a que esta Suprema Corte chegou, quando do
julgamento plenário da mencionada ADI 3.685/DF, foi a de que o
Congresso Nacional não pode, no exercício de seu poder de reforma,
alterar a Constituição, para, nela, introduzir prescrições que
modifiquem, restrinjam ou afetem o alcance da norma inscrita no art. 16
da própria Lei Fundamental, pois, se assim não fosse, estar-se-ia
permitindo que a instituição parlamentar transgredisse as garantias
fundamentais inerentes à segurança jurídica e ao devido processo
eleitoral.
Assentado, desse modo, que mesmo as emendas à
Constituição não podem transgredir a cláusula de salvaguarda que
protege as matérias referidas no § 4º do art. 60 do estatuto
constitucional (nestas incluída a regra fundada no art. 16 da Carta
RE 631.102 / PA
23
Política, como esta Corte reconheceu na ADI 3.685/DF), cabe advertir
que, em ocorrendo tal ofensa às cláusulas pétreas, legitimar-se-á a
intervenção tutelar do Poder Judiciário, cuja função precípua –
presente tal contexto – consiste em fazer prevalecer a vontade
soberana do constituinte originário, mantendo íntegro o núcleo
consubstanciador das decisões políticas fundamentais adotadas no
âmbito do Estado e cuja inobservância compromete o alto significado
que deve representar, nas sociedades democráticas, o texto da Lei
Fundamental, que não pode ser conspurcado em sua essência, que não
pode ser vulnerado em seu espírito, sob pena de tal desrespeito
acarretar-lhe um irreparável déficit de legitimidade político-social.
Nisso consiste a alta finalidade de que se revestem as
cláusulas pétreas, que não podem ser reduzidas à subalterna condição
de fórmulas antidemocráticas, consideradas as próprias razões de
ordem histórica e política que justificaram a sua consagração nas
Constituições elaboradas sob a égide do princípio democrático.
Isso significa, portanto, que, longe de afetar os
fundamentos em que se assenta o Estado Democrático de Direito, a
razão subjacente às cláusulas pétreas traduz a necessidade de
preservar, de modo especial, a permanente intangibilidade dos
valores, que, erigidos à condição de elementos determinantes da
RE 631.102 / PA
24
própria identidade constitucional, merecem, por isso mesmo, a
qualificada proteção que lhes deu a Constituição, sob pena de a
transgressão a esse sistema de valores romper a própria unidade da
Constituição, degradá-la em sua irrecusável supremacia, atingir-lhe
a coerência interna e, assim, comprometer a integridade do núcleo
axiológico que anima e dá significação material à Lei Fundamental,
convertendo-a, arbitrariamente, em um instrumento normativo incapaz
de manter-se fiel aos compromissos que justificaram, em determinado
momento histórico, a sua soberana formulação por uma Assembléia
Constituinte investida de poderes originários.
Vê-se, desse modo, consideradas as razões expostas a
respeito do caráter juridicamente subordinado do poder reformador,
que não se revela legítima qualquer deliberação do Congresso
Nacional, ainda que em sede de emenda à Constituição, que atinja o
núcleo essencial consubstanciador das decisões políticas
fundamentais subjacentes ao estatuto constitucional.
É imperioso advertir, por isso mesmo, que o núcleo
essencial – precisamente por conferir identidade ao texto
constitucional - não pode expor-se, quanto a seus elementos
fundamentais, a manipulações e a mutações impostas pelo órgão
investido da competência para reformar a Carta Política.
RE 631.102 / PA
25
Com maior razão, torna-se inadmissível reconhecer que
qualquer diploma legislativo de caráter infraconstitucional, como a
LC nº 135/2010, disponha de força normativa superior àquela que emana
de uma emenda à Constituição.
Isso significa que as inovações que a Lei
Complementar nº 135/2010 introduziu no processo eleitoral estão
sujeitas, antes de mais nada, à rígida observância do que impõe o
art. 16 da Constituição da República.
Sabemos, Senhor Presidente, que nada compensa a ruptura
da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que
derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental, como
adverte KONRAD HESSE (“A Força Normativa da Constituição”, p. 22,
1991, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Fabris Editor).
É que uma Constituição democrática - muito mais do que
um estatuto de organização do poder e de garantia das liberdades
públicas - reveste-se de alta significação emblemática, pois
representa a expressão mais intensa do processo de transformação
histórica da sociedade e do Estado, nela concentrando-se o modelo
RE 631.102 / PA
26
legitimador das práticas governamentais e do exercício dos direitos,
garantias e deveres individuais e coletivos.
A defesa da Constituição não se expõe nem deve
submeter-se, por isso mesmo, a qualquer juízo de oportunidade ou de
conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em
razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus
agentes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação
de respeito.
A supremacia da Constituição traduz, desse modo, na
experiência concreta das sociedades democráticas, um fator
referencial da mais significativa importância. Enquanto peça
fundamental no processo de edificação do Estado e de preservação das
liberdades públicas, a Constituição não é simples obra de
circunstância, destinada a ser manipulada, de modo irresponsável e
inconsequente, pelos detentores do Poder, pelas instituições ou por
qualquer pessoa, agente ou autoridade da República.
Reconheço, Senhor Presidente, que a garantia da
anterioridade eleitoral ganha relevo e assume aspecto de
fundamentalidade, subsumindo-se ao âmbito de proteção das cláusulas
pétreas, cujo domínio - a partir de exigências inafastáveis fundadas
RE 631.102 / PA
27
no princípio da segurança jurídica e apoiadas no postulado que
consagra a proteção da confiança do cidadão no Estado – impede que
qualquer ato estatal, ainda que se trate de emenda à Constituição
(ou, até mesmo, de interpretação judicial), descaracterize o sentido
e comprometa a própria razão de ser do postulado inscrito no art. 16
da Constituição da República.
Há a considerar, pois, no contexto em exame, uma
garantia básica, impregnada de caráter fundamental, que se mostra
amparada, por isso mesmo, pelas cláusulas pétreas e cuja incidência
importa, como aqui já se enfatizou, em clara limitação material ao
exercício, pelo Congresso Nacional, de seu poder de reforma.
Refiro-me à garantia do devido processo eleitoral,
cujos elementos – concebidos para viabilizar a igual competitividade
entre os candidatos e respectivas agremiações partidárias, de um
lado, e projetados para assegurar, em favor dos cidadãos eleitores,
e, também, dos candidatos e respectivos partidos políticos, a
certeza da estabilidade das regras do jogo eleitoral, de outro –
objetivam, em última análise, dar sentido e efetividade a um valor
essencial, fundado na segurança jurídica e que visa, no plano das
eleições, a preservar a confiança que deve sempre prevalecer na
esfera das relações entre os indivíduos e o Estado, para que a
RE 631.102 / PA
28
mudança abrupta da disciplina normativa do processo eleitoral não se
transforme em instrumento vulnerador de princípios constitucionais
cuja supremacia se impõe, até mesmo, ao Congresso Nacional, ainda
que no exercício de seu poder de reforma.
Já se disse, nesta Suprema Corte, que o Congresso
Nacional, em matéria de sua competência, pode muito, mas não pode
tudo, pois, acima do poder que se reconhece ao Legislativo (e,
também, ao Judiciário), situa-se a autoridade incontrastável da
Constituição da República, cujo art. 60, § 4º, estabelece
incontornáveis limitações materiais explícitas ao poder reformador
daquele órgão da soberania nacional, a significar que a Câmara dos
Deputados e o Senado Federal não podem transgredir, quer mediante
leis de iniciativa popular (como na espécie), quer por intermédio de
emendas à Constituição, o núcleo da Constituição, sob pena de tais
Casas legislativas perpetrarem lesão gravíssima aos postulados que
refletem o espírito e que permitem preservar a própria identidade do
texto constitucional.
O E. Tribunal Superior Eleitoral, no acórdão ora
recorrido, também proclamou, equivocadamente, que “a inelegibilidade
não constitui pena, não se podendo cogitar de ofensa ao princípio da
irretroatividade das leis”.
RE 631.102 / PA
29
Tenho para mim, não obstante o julgamento plenário do
MS 22.087/DF, que a inelegibilidade, em situações como a prevista na
alínea “k” do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90, na redação dada
pela LC nº 135/2010, qualifica-se como sanção, configurando, sob tal
perspectiva, a denominada inelegibilidade cominada, não obstante – e
nisso reside um grave paradoxo instituído pelo preceito legal em
questão – o caráter plenamente lícito do ato (a renúncia ao mandato
representativo), que foi tipificado como causa geradora dessa
modalidade de privação da cidadania passiva.
Extremamente correta, no ponto, a crítica expendida
pelo eminente Professor ADRIANO SOARES DA COSTA (“Teoria da
inelegibilidade, ficha limpa e registro de candidatura: novas –
velhas – considerações teóricas”) a propósito do entendimento que o
E. Tribunal Superior Eleitoral manifestou na Consulta nº 1147-9 e
reafirmou no julgamento objeto do presente recurso extraordinário:
“Os exemplos citados por Versiani para afirmar que
a inelegibilidade não é uma sanção em si mesma são, à
toda evidência, de inelegibilidade inata, é dizer,
inelegibilidade que decorre da ausência das condições
de elegibilidade, próprias ou impróprias. É a
inelegibilidade comum a todos os brasileiros que não
têm registro de candidatura, em razão do déficit dos
pressupostos constitucionais ou legais para obtê-lo.
Desde 1998, chamo a atenção, em minhas obras, que nem
RE 631.102 / PA
30
toda inelegibilidade tem natureza sancionatória. As
inelegibilidades que decorrem da ausência de
elegibilidade são lícitas, é dizer, efeitos do fato
jurídico negativo da ausência de registro de
candidatura.
Ocupar um cargo de magistrado ou ser irmão de algum
ocupante do mandato de Governador não é fato jurídico
ilícito. São situações jurídicas que ingressam no mundo
jurídico no plano da licitude, da conformidade ao
Direito. Por razões de conveniência, como o de buscar a
paridade de armas entre os nacionais que desejam
disputar uma eleição, é que a Constituição ou leis
ordinárias ou complementares estabelecem requisitos
positivos e negativos ao nascimento do direito ao
registro de candidatura. Entre os requisitos está a
necessidade de desincompatibilização de determinados
cargos ou funções públicas; o estar incompatível é
estar inatamente inelegível.
A desincompabilização de determinados cargos ou
funções com a finalidade de zelar pelo equilíbrio do
pleito é condição de elegibilidade, portanto. O ato de
desincompatibilizar-se é fato jurídico lícito; o estar
incompatível é situação jurídica lícita que impede a
obtenção do registro de candidatura pela ausência do
preenchimento de uma das condições de elegibilidade.
...................................................
Na apreciação do pedido de registro de candidatura
deve-se também analisar, destarte, se há alguma
inelegibilidade cominada decorrente de algum fato
ilícito eleitoral anterior. Ou seja, se houver alguma
sanção de inelegibilidade, decretada por decisão
judicial anterior (hoje, inclusive, pouco importando se
transitada em julgado ou se apenas advinda de órgão
colegiado), não se poderá deferir validamente o
registro de candidatura. Essa sempre foi, e continuará
a ser, o regime da inelegibilidade cominada, não
havendo nenhuma mudança introduzida pela LC 135, salvo
a desnecessidade de trânsito em julgado da decisão que
a decreta. Note-se: a execução (‘rectius’, cumprimento)
imediata do efeito mandamental, que vem colado à
eficácia preponderante constitutiva negativa, ínsita à
decisão que decreta a inelegibilidade (hoje,
independentemente do trânsito em julgado), nada mudou
da natureza da inelegibilidade cominada potenciada:
continua a ser o que sempre foi: sanção a atos ilícitos
RE 631.102 / PA
31
eleitorais (...). Ou seja, o fato de se cumprir
imediatamente a ordem de cassação do registro, em razão
de decisão de órgão colegiado, não desnatura ou
modifica o conceito de inelegibilidade. Inelegibilidade
é instituto de direito material; adiantamento dos
efeitos da decisão, independentemente da formação de
coisa julgada, é tema de direito processual. Não se
pode, pois, encambulhar os planos, que são distintos.
...................................................
Ora, como já demonstramos, um dos momentos
pertinentes para a apreciação da existência da prévia
cominação de inelegibilidade é o do pedido de registro de
candidatura. O outro momento é logo após a diplomação,
ainda assim em relação a inelegibilidades supervenientes
ao registro ou de natureza constitucional. Assim, o
pedido do registro de candidatura sempre foi, e continua
sendo, o momento apropriado para a aferição da existência
de alguma sanção de inelegibilidade aplicada ao
candidato. Não houve nenhuma mudança de regime jurídico
quanto ao ponto.
Outra questão importante (...) é que as hipóteses
de inelegibilidade previstas na LC 64/90 eram já para
proteger a probidade, a moralidade e levando em conta a
vida pregressa, cumprindo o preceito do art. 14, § 9º,
da CF/88. Aliás, eram assim já na CF 67, com a
EC 01/69. A LC 135/2010 apenas ampliou e uniformizou o
tempo da sanção de inelegibilidade para 8 anos, além de
tornar desnecessário o trânsito em julgado das decisões
judiciais que a decretem. Houve exacerbação, portanto,
do caráter sancionatório da inelegibilidade; a sanção
tornou-se mais dura, chegando em alguns casos à
insensatez.
É dizer, todas as hipóteses de inelegibilidade, ao
tempo da LC 64/90 e, agora, sob a vigência da
LC 135/2010, são sanções que visam a proteger a
probidade, a moralidade, inclusive levando em conta a
vida pregressa. Não há exceção; nunca houve!
(...) Ora, a inelegibilidade cominada é sempre
efeito de um fato jurídico ilícito, decretada por
decisão judicial de eficácia preponderante constitutiva
negativa. A decisão judicial que a decreta tem
relevante efeito declaratório da ocorrência do fato
jurídico ilícito.
É por isso que, no momento da apreciação do momento
do registro de candidatura, o juiz não constitui a
RE 631.102 / PA
32
inelegibilidade cominada; ele a declara existente no
mundo jurídico, como efeito de um fato jurídico ilícito
anterior, que levou à sua decretação judicial, também
ela anterior ao pedido de registro.
...................................................
Sempre insisti nesse ponto, descurado por muitos:
uma coisa é o direito subjetivo ao registro de
candidatura, nascido do fato jurídico complexo do
preenchimento das condições de elegibilidade; outra
coisa, porém, é o direito de ser votado, a
elegibilidade, nascido do fato jurídico do registro de
candidatura. A inelegibilidade cominada potenciada
obsta o exercício daquele direito ao registro de
candidatura, como sanção pela prática de algum fato
ilícito.
Assim, quando o ordenamento prescreve que não se
pode registrar candidato inelegível está simplesmente
dando concretude à natureza sancionatória da
inelegibilidade cominada. Aliás, a única finalidade da
inelegibilidade cominada potenciada é obstar o
exercício do direito ao registro, se existente antes do
pedido de registro, ou cancelá-lo, se superveniente.
Essas lições estão em meus escritos desde 1998. A
LC 135 nada mudou nesse sentido, não alterando em nada
a natureza sancionatória da inelegibilidade, bem como a
sua função obstativa ao registro de candidatura.
(...) E não se sustenta, ademais, porque esqueceu
de observar o regime jurídico do tempo em que o fato
ilícito, que fez nascer a inelegibilidade, se deu. Se o
ilícito ocorreu antes da LC 135, como aplicá-la em
retroversão para o passado, retroativamente, gravando
situações jurídicas já consolidadas?” (grifei)
A inelegibilidade cominada, como sabemos, tem natureza
de sanção, como o reconhece o magistério da doutrina (JOSÉ JAIRO
GOMES, “Direito Eleitoral”, p. 141, item n. 3, 2008, Del Rey; RUI
STOCO e LEANDRO DE OLIVEIRA STOCO, “Legislação Eleitoral
Interpretada: Doutrina e Jurisprudência”, p. 147, item n. I, 2ª ed.,
2006, RT; ADRIANO SOARES DA COSTA, “Teoria da Inelegibilidade e o
RE 631.102 / PA
33
Direito Processual Eleitoral”, p. 148, item n. 1, 1998, Del Rey e
TORQUATO JARDIM, “Direito Eleitoral Positivo conforme a nova lei
eleitoral”, p. 68, item n. 47, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica;
ANTONIO CARLOS MENDES, “Introdução à Teoria das Inelegibilidades”,
p. 109/110, item n. 145, 1993, Malheiros) e torna inequívoco o
próprio texto normativo constante da LC nº 64/90, seja em sua
redação originária, seja naquela introduzida pela LC nº 135/2010, em
prescrições nas quais tais diplomas legislativos expressamente
referem-se à “sanção de inelegibilidade” (art. 22, XIV).
Mesmo que não se considere a inelegibilidade como
sanção, o fato irrecusável é que ela traduz gravíssima limitação ao
direito fundamental de participação política, pois impõe severa
restrição à capacidade eleitoral passiva do cidadão, o que o priva e
destitui “do direito de participação no processo político e nos
órgãos governamentais”, como adverte JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de
Direito Constitucional Positivo”, p. 329, 5ª ed., 1989, RT).
Trate-se, portanto, de sanção (como efetivamente o é
nas hipóteses de inelegibilidade cominada) ou cuide-se de restrição
a um direito fundamental (a denominada liberdade-participação), a
inelegibilidade está sujeita a um regime que não admite
interpretações ampliativas (FÁVILA RIBEIRO, “Direito Eleitoral”,
RE 631.102 / PA
34
p. 106, item n. 286, 1976, Forense), resultando, daí, a
impossibilidade de fazê-la incidir sobre fatos pretéritos, ainda
mais se estes se apresentavam revestidos de inteira licitude, como a
renúncia ao mandato, que, em sua condição de verdadeiro direito
potestativo, tinha – como ainda tem – suporte plenamente legitimador
em preceito constante da própria Constituição (art. 55, § 4º).
A impossibilidade constitucional de se conferir
eficácia retroativa (ainda que sob a equivocada afirmação de se
tratar de aplicação justificada pelo efeito imediato de uma nova
lei), tanto mais se agrava quando se tem presente que o acórdão ora
recorrido, sem razão legítima, viabilizou uma (inconstitucional)
retroação de cláusula legal (alínea “k”), fazendo-a incidir sobre
fato pretérito lícito.
Ao assim interpretar a regra legal em questão, o
E. Tribunal Superior Eleitoral permitiu, mediante reconhecimento de
efeito jurídico póstumo, que se desconsiderasse,
inconstitucionalmente, a integridade de um ato jurídico perfeito
consubstanciado na renúncia (válida) ao mandato legislativo, que se
realizou e que se aperfeiçoou com estrita observância do ordenamento
positivo então vigente.
RE 631.102 / PA
35
Esse entendimento, emanado do E. Tribunal Superior
Eleitoral, culmina por validar exegese que torna possível, ao Estado,
desrespeitar “a inviolabilidade do passado”, atribuindo, a um ato já
exaurido em todas as suas potencialidades jurídicas (extinção do
mandato representativo + convocação e posse do suplente) – e, por isso
mesmo, subsumível à noção de ato jurídico perfeito –, uma nova (e
gravosa) consequência no plano jurídico-eleitoral.
Na realidade, a decisão do Tribunal Superior Eleitoral,
ao reconhecer a (inadmissível) possibilidade de o legislador
imputar, ao ato de renúncia (aperfeiçoado, no passado, segundo o
ordenamento positivo então vigente), a irradiação de um novo e
superveniente efeito claramente restritivo do direito fundamental de
participação política, incorreu em ofensa à cláusula inscrita no
inciso XXXVI do art. 5º da Constituição, que assegura a incolumidade
do ato jurídico perfeito e que obsta, por isso mesmo, qualquer
conduta estatal que provoque, mediante restrição normativa
superveniente, a desconstrução ou a modificação de situações
jurídicas lícitas e definitivamente consolidadas, ainda mais quando
se lhes agregam consequências sequer autorizadas pela legislação em
vigor no momento em que se formulou a declaração unilateral de
vontade, cuja eficácia resultou do que ainda se contém no § 4º do
art. 55 da Constituição Federal.
RE 631.102 / PA
36
Desse modo, entendo assistir razão ao candidato ora
recorrente, quando invoca, com inteira correção, os fundamentos
evidenciadores da aplicação inconstitucional, ao caso ora em exame, da
regra inscrita na alínea “k” do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90, na
redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010.
No presente caso, a renúncia do ora recorrente ao
mandato de Senador - por se tratar de declaração unilateral de
vontade, de caráter receptício – foi praticada de modo inteiramente
válido, tanto que, comunicada, regularmente, ao seu destinatário
constitucional (o Senado Federal), por este foi recebida e dela
foram extraídas as únicas consequências que podiam emergir, naquele
momento, dessa declaração de vontade: (a) a extinção do mandato
parlamentar, com a consequente proclamação da vacância do cargo e
(b) a posse, mediante sucessão constitucional, do suplente, para tal
fim convocado.
Assim, a renúncia em causa traduzia, na concreção de
seu alcance, uma manifestação inteiramente lícita de vontade, que
exauriu, de modo instantâneo, toda a sua carga eficacial, o que
torna conflitante com o texto constitucional a outorga –
expressamente admitida pelo Tribunal Superior Eleitoral – de
RE 631.102 / PA
37
verdadeiro efeito póstumo ao ato de renúncia, gerador de uma
hipótese superveniente de inelegibilidade cominada, a significar,
não obstante a plena liceidade do ato abdicativo, que a Alta Corte
Eleitoral, indevidamente, considerou viável a (incompreensível)
qualificação de tal ato como transgressor da probidade e da
moralidade administrativas...
Tendo em vista a correta alegação do ora recorrente, de
que a Justiça Eleitoral não podia considerar como ofensiva aos
valores da probidade e da moralidade, para efeito de incidência de
nova causa de inelegibilidade (inelegibilidade cominada), a prática
legítima de um ato que, revestido de plena licitude, encontra
fundamento no próprio texto da Constituição (art. 55, § 4º), entendo
que o acórdão ora recorrido, ao admitir semelhante (e paradoxal)
possibilidade, ofendeu o postulado da razoabilidade, que impede o
Estado de agir imoderadamente, quando no desempenho de suas
atribuições.
Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz
limitação material à atividade do Poder Público.
Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente
ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto
RE 631.102 / PA
38
coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”,
p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE
FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 46, item n. 3.3,
2ª ed., 1995, Malheiros) - como postulado básico de contenção dos
excessos do Poder Público.
Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a
ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que
se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade
estatal de produção normativa ou, como na espécie, de resolução
judicial de conflitos -, adverte que o princípio da
proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático
de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades
fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo
a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais,
notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou
material, a garantia do “due process of law” (RAQUEL DENIZE STUMM,
“Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional
Brasileiro”, p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL
GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Direitos Humanos Fundamentais”,
p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, “Curso de
RE 631.102 / PA
39
Direito Constitucional”, p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993,
Malheiros).
A validade das manifestações do Estado, portanto,
analisadas estas em função de seu conteúdo intrínseco -
especialmente naquelas hipóteses de imposições restritivas ou
supressivas incidentes sobre determinados valores básicos (como os
direitos fundamentais) - passa a depender, essencialmente, da
observância de determinados requisitos que atuam como expressivas
limitações materiais à ação do Poder Público.
A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal
Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos
estatais (inclusive de atos do Poder Judiciário), que,
desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder do Estado,
veiculam prescrições ou decisões que ofendem os padrões de
razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima,
exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos
inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel.
Min. CELSO DE MELLO – RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO -
ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
RE 631.102 / PA
40
O acórdão recorrido, ao aplicar, retroativamente, o
preceito inscrito na alínea “k” do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90,
na redação dada pela LC nº 135/2010, também desrespeitou, de modo
claro e inequívoco, outro postulado fundamental, impregnado de
vocação protetiva, inscrito no art. 5º, XXXVI, da Carta Federal, que
objetiva resguardar a incolumidade das situações jurídicas
definitivamente estabelecidas.
Não constitui demasia enfatizar que, no sistema de
direito constitucional positivo brasileiro, tal como deixei
consignado em diversos julgamentos ocorridos na década de 1990, a
eficácia retroativa das leis (a) é sempre excepcional, (b) supõe a
existência de texto expresso (e autorizativo) de lei, (c) jamais se
presume e (d) não deve nem pode gerar lesão ao ato jurídico
perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada (RT 218/447 –
RF 102/72 - RF 144/166 - RF 153/695).
Mesmo no direito romano, Senhor Presidente, já havia a
preocupação com a questão da retroatividade da lei – nela compreendidos
tanto os efeitos lesivos decorrentes da retroprojeção normativa quanto
a frustração injusta da confiança (“fides”) legitimamente
depositada, pelo cidadão, no regime jurídico então vigente à época em
que celebrado o ato -, como se extrai da lição de REYNALDO
RE 631.102 / PA
41
PORCHAT (“Curso Elementar de Direito Romano”, vol. 1/496 e 500,
itens ns. 531 e 533, 1907, Duprat & Cia):
“Certamente não passou despercebido aos romanos o
alto interesse jurídico que se liga a este
importantíssimo assumpto, que já tinha despertado a
attenção dos philosophos antigos. Na Grécia, Platão e
Sócrates já pregavam, como verdade philosophica, que as
leis, cujo fim é o útil, sómente podiam dispor para o
futuro. Mais tarde Cícero, na sua segunda oração contra
Verres, referindo-se á lei Voconia, fazia ver que as
leis não deviam reger actos do passado. O direito
canônico também elaborou regras a respeito do assumpto.
...................................................
Tendo-se em vista todos esses textos, e muitos
outros que poderiam ser citados, parece que a
legislação romana guardava o princípio da não
retroactividade das leis.” (grifei)
A percepção em torno da irretroatividade da legislação
foi bem realçada em algumas constituições imperiais, como aquela
editada por Teodósio I, veiculadora da “Primeira Regra Teodosiana”,
segundo a qual as normas não devem reger nem afetar fatos passados,
limitando-se, apenas, a regular, prospectivamente, os fatos futuros.
Mostra-se importante destacar, neste ponto, o papel
desempenhado pelo Imperador bizantino Justiniano que, motivado pelo
desejo de restaurar o antigo esplendor de Roma, promoveu a
codificação do direito romano e a recopilação de antigas leis e
constituições imperiais romanas, tanto quanto editou, ele próprio,
RE 631.102 / PA
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novas constituições imperiais, além de haver reorganizado (e
recuperado) pareceres e opiniões de grandes jurisconsultos romanos,
construindo, a partir dos trabalhos desenvolvidos por um colégio de
juristas, sob a coordenação de Triboniano, uma obra extraordinária,
que veio a ser posteriormente denominada Corpus Juris Civilis, na
qual delineou princípios que permitiram, já no Século VI da era
cristã, a formulação, ainda que incipiente, de um sistema regulador
de conflito de leis no tempo.
Vale rememorar, por expressivo, na linha do sistema
justinianeu, fragmento da Novela 22, 1, 1, na qual o Imperador
Justiniano, ao editar essa nova constituição imperial, estabeleceu,
de modo absolutamente claro, regra consagradora da prospectividade
das leis, com vedação de sua projeção retroativa:
“Duas disposições preliminares precedem esta lei.
Primeiramente, as constituições sancionadas por nossos
antecessores ‘devem valer cada qual de acôrdo com o seu
tempo, sem interferência da presente lei’: serão
válidas e respeitadas nos casos respectivos: ‘e os seus
efeitos se regularão pelas leis já promulgadas, e em
nada pela presente ...’, pois tudo que passou deixamos
para o órbita das leis passadas, ao passo que o futuro
fazemos reger pela presente lei ... ‘Aquêles que,
confiantes’ (nas leis de então), ‘entabularam negócios,
em nada se podem culpar de ignorar o futuro.” (grifei)
O eminente e saudoso Professor RUBENS LIMONGI FRANÇA,
em clássica obra a respeito do tema da irretroatividade das leis
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(“Direito Intertemporal Brasileiro”, p. 59 e 67/71, 2ª ed., 1968,
RT), enfatizou o incomensurável relevo da obra e do legado de
Justiniano, com especial ênfase sobre a consagração, no sistema
jurídico da época desse notável Imperador bizantino, do princípio da
irretroatividade:
“A matéria de Direito Intertemporal, na legislação
justinianéia, se encontra principalmente no ‘Código’ e
nas ‘Novelas’. (...).
...................................................
O lapso de quase um século que medeou entre o
Código Teodosiano e a legislação justinianéia, a
despeito da angústia a que se limitaram as fontes
produtoras do Direito, deu azo a um gradativo
amadurecimento do espírito jurídico dos Romanos. É
certo que isso mal se nota nas constituições dessa
época, exceção feita de algumas normas do imperador
ANASTÁCIO. Mas a julgar pelo número de escolas
jurídicas do tempo, e sobretudo pelo teor do trabalho
de TRIBONIANO e dos seus auxiliares aí se preparou o
renascimento da Ciência do ‘Jus Civile’, de cuja
definitiva influência o mundo civilizado se ressente
até os nossos dias.
Não é pois de admirar que o Direito Intertemporal
Justinianeu apresente uma riqueza sem precedentes.
...................................................
Em vários lugares JUSTINIANO elucida o fundamento
jurídico da não-retroprojeção das leis, a saber, a
‘fides’, a confiança no regime jurídico em vigor e a
impossibilidade de se aplicarem normas ainda
inexistentes do mesmo modo que, através de uma
constituição de ANASTÁCIO (C. 10, 31, 65), onde se
encontra a locução – ‘calunias excitare’ - realça, tal
como o fizera TEODÓSIO, ‘o Grande’, o caráter odioso e,
por isso mesmo, restringendo, da retroatividade.
...................................................
Finalmente, é relevante notar que JUSTINIANO
aplicou o Princípio da Irretroatividade das Leis a um
grande número de matérias (testamentos, juros, dotes,
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estado de filiação, assuntos penais, etc.) e, sobretudo
nas Novelas, emprestou ao tema um desenvolvimento sem
precedentes em treze séculos de Direito Romano.
...................................................
Em quanto está contido nos dois parágrafos
anteriores, especialmente no último, vai implícito o
grande significado da contribuição de JUSTINIANO para o
progresso do Direito Intertemporal.
Como bem se pode aí aquinhoar, não se limitou o
autor do ‘Corpus Juris Civilis’ a mera obra de
compilação, como, um século antes, fizera TEODÓSIO II.
Além da ordenação do direito antecedente, o que já de
si fôra contribuição considerável, JUSTINIANO oferece
criação própria, como bem se vê através das longas
considerações sôbre a matéria, insertas em várias de
suas preclaríssimas ‘Novelas’.
...................................................
O exame, porém, da evolução da matéria no Direito
Antigo, e especialmente no Direito Romano, mostra quão
grande foi o avanço dado por JUSTINIANO, de tal forma
que, se de um lado a sua doutrina não é completa, do
outro, pedimos vênia para sustentar a existência de um
esbôço de ‘Sistema de Direito Intertemporal
Justinianeu’, de caráter précientífico, inspiração e
fundamento de quanto de mais desenvolvido, a partir
daí, se produziu a respeito do assunto.
Muitas idades após, em pleno século XIX, a argúcia
de suas lições ainda irá iluminar a cerebração dos
mestres, e será com base nos textos do ‘Codex’ e das
‘Novellae’ que, com a Exegese e a Escola Histórica, se
iniciará a Fase Científica do Direito Intertemporal.”
(grifei)
Em nosso sistema jurídico, o princípio da
irretroatividade deita raízes no texto da própria Constituição, o
que impede qualquer ação legislativa do Congresso Nacional que
contrarie o dogma da intangibilidade das situações jurídicas
definitivamente consolidadas no tempo.
RE 631.102 / PA
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É imperioso relembrar, portanto, que emana de fonte
constitucional a cláusula que confere intangibilidade às situações
jurídicas definitivamente consolidadas, quer resultem estas do ato
jurídico perfeito, ou, então, do direito adquirido ou, ainda, da
autoridade da coisa julgada.
Na realidade, essa cláusula de salvaguarda, que
consubstancia verdadeira norma de sobredireito, objetiva atribuir
concreção e dar efetividade à exigência de preservação da segurança
das relações jurídicas instituídas e validamente estabelecidas sob a
égide de determinado ordenamento positivo.
Se é certo, de um lado, que, em face da prospectividade
ordinária das leis, os fatos pretéritos escapam, naturalmente, ao
domínio normativo desses atos estatais (RT 299/478), não é menos
exato afirmar, de outro, que, para efeito de incidência da cláusula
constitucional de proteção às situações jurídicas definitivamente
consolidadas, mostra-se irrelevante a distinção pertinente à
natureza dos atos legislativos.
Trate-se de leis de caráter meramente dispositivo,
cuide-se de leis de ordem pública, todas essas espécies normativas
subordinam-se, de modo pleno, à eficácia condicionante e
RE 631.102 / PA
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incontrastável do princípio constitucional assegurador da
intangibilidade do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da
coisa julgada em face de ação normativa superveniente do Poder
Público (RTJ 106/314).
Daí porque esta Suprema Corte, ao julgar a ADI 493/DF,
Rel. Min. MOREIRA ALVES (RTJ 143/746), afastou qualquer possível
dúvida que ainda pudesse subsistir nessa matéria, assim se
pronunciando:
“Por outro lado, no direito brasileiro, a eficácia
da lei no tempo é disciplinada por norma
constitucional. Com efeito, figura entre as garantias
constitucionais fundamentais a prevista no inciso XXXVI
do artigo 5º da Constituição Federal:
‘A lei não prejudicará o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito e a coisa julgada’.
Esse preceito constitucional se aplica a toda e
qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer
distinção entre lei de direito público e lei de direito
privado, ou entre lei de ordem pública e lei
dispositiva. Já na representação de
inconstitucionalidade nº 1.451, salientei em voto que
proferi como relator:
‘Aliás, no Brasil, sendo o princípio do
respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico
perfeito e à coisa julgada de natureza
constitucional, sem qualquer exceção a qualquer
espécie de legislação ordinária, não tem sentido a
afirmação de muitos - apegados ao direito de países
em que o preceito é de origem meramente legal – de
que as leis de ordem pública se aplicam de imediato
RE 631.102 / PA
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alcançando os efeitos futuros do ato jurídico
perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se
alteram os efeitos, é óbvio que se está
introduzindo modificação na causa, o que é vedado
constitucionalmente.’
E, ao apreciar o pedido de liminar nesta ação
direta, entendi que, no caso, havia relevância
jurídica, porque, ‘no direito brasileiro, o princípio
do respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito
adquirido é de natureza constitucional, e não
excepciona de sua observância por parte do legislador
lei infraconstitucional de qualquer espécie, inclusive
de ordem pública, ao contrário do que sucede em países
como a França em que esse princípio é estabelecido em
lei ordinária, e, conseqüentemente, não obriga o
legislador (que pode afastá-lo em lei ordinária
posterior), mas apenas o juiz, que, no entanto, em se
tratando de lei ordinária de ordem pública, pode
aplicá-la, no entender de muitos, retroativamente ainda
que ela silencie a esse respeito'.
Aliás, ainda nos países - como a França - em que o
princípio da irretroatividade é meramente legal e se
impõe ao juiz e não ao legislador, não é pacífica a
tese de que as leis de ordem pública são retroativas.”
(grifei)
A relevantíssima circunstância de o princípio
consagrador da intangibilidade do ato jurídico perfeito - e das
demais situações definitivamente consolidadas - possuir extração
constitucional leva o magistério da doutrina a advertir que esse
postulado fundamental é de incidência abrangente, alcançando, por
isso mesmo, ante a imperatividade de sua projeção, as regras de
natureza meramente legal (e, também, aquelas resultantes do poder de
reforma do Congresso Nacional), ainda que qualificadas como normas de
ordem pública (CARLOS AUGUSTO DA SILVEIRA LOBO, “Irretroatividade das
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Leis de Ordem Pública”, “in” RF 289/239-242; REYNALDO PORCHAT, “Curso
Elementar de Direito Romano”, vol. I/492-493, item n. 528, 1907, Duprat
& Cia; OSCAR TENÓRIO, “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”,
p. 198/199, 2ª ed., 1955, Rio; CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,
“Instituições de Direito Civil”, vol. I/128, Forense, v.g.).
Cabe enfatizar, portanto, Senhor Presidente, que as
normas de ordem pública encontram, no postulado tutelar inscrito no
art. 5º, XXXVI, da Lei Fundamental, um obstáculo político-jurídico
absolutamente insuperável, a significar que não podem desconstituir
consequências jurídicas resultantes de situações pretéritas nem
imputar, a fatos lícitos ocorridos no passado, efeitos novos
limitativos de direitos, ainda mais se se tratar de direitos
fundamentais, como o direito de participação política, fundamento
legitimador da prerrogativa de ser candidato.
Perfilha igual orientação o saudoso J. M. OTHON SIDOU
(“O Direito Legal”, p. 228/229, item XIII, 1985, Forense), para
quem, considerada a concepção vigente no sistema normativo
brasileiro pertinente à resolução do conflito intertemporal de leis,
“A lei nova não atinge consequências que, segundo a lei anterior,
deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação
jurídica, isto é, que se unem à sua causa como um corolário
RE 631.102 / PA
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necessário e útil”, expendendo, a esse propósito, magistério
irrepreensível:
“Retroativa e, portanto, condenável (...) é não
somente a regra positiva que contrasta com as
consequências, já realizadas, do fato consumado, mas
também a que impede as consequências futuras do mesmo
fato, por uma razão relativa só a ele.” (grifei)
Mesmo, portanto, que se trate de leis de conteúdo
eleitoral, não se revestem estas de eficácia jurídica bastante para
contrariar liberdades fundamentais, como a concernente ao direito de
participação política ou, ainda, como aquela referente à
intangibilidade dos atos jurídicos perfeitos, que se acham
assegurados, explicitamente, em norma de salvaguarda, pelo próprio
estatuto constitucional, por mais imperiosos que se apresentem os
motivos de ordem pública invocados pelo Estado para justificar a
edição de determinado diploma legislativo, não obstante instaurado o
respectivo processo de formação mediante iniciativa popular.
Se é certo, tal como ressalta a jurisprudência desta
Suprema Corte, que “A lei nova tem caráter imediato e geral”, não é
menos exato que o dogma constitucional que garante a intangibilidade
do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada
impede que o ato estatal superveniente, qualquer que seja a natureza
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ou índole de que se revista (como uma decisão judicial), atinja “a
situação jurídica definitivamente constituída sob a égide da lei
anterior” (RTJ 55/35) ou, então, eleja certa causa ocorrida no
passado, para, com fundamento nela, atribuir-lhe, em caráter inovador,
efeito restritivo de direitos, veiculador de limitação ao direito
fundamental de participação política.
Nem mesmo os efeitos posteriores das situações
constituídas podem ser afetados pela incidência da nova lei, porque -
caso admitida tal consequência - estar-se-ia iniludivelmente
fraudando a vontade subordinante do legislador constituinte e
paradoxalmente reconhecendo a inaceitável possibilidade jurídica da
existência de ato estatal com projeção retroeficaz gravosa, gerando,
desse modo, situação normativa absolutamente incompatível com a
tradição de nosso constitucionalismo democrático.
A circunstância de as leis terem efeito imediato não
legitima a interpretação que o Tribunal Superior Eleitoral deu à Lei
Complementar nº 135/2010, fazendo-a incidir, de modo
inconstitucional, sobre situação pretérita que, além de exaurida em
todas as suas potencialidades jurídicas, já se achava
definitivamente consolidada no tempo, como sucedeu com a renúncia do
RE 631.102 / PA
51
ora recorrente ao mandato parlamentar, por ele formalizada anos
antes da vigência do diploma legislativo referido...
A interpretação emanada do E. Tribunal Superior
Eleitoral, claramente lesiva ao princípio da irretroatividade,
somente se sustentaria se ainda vigesse a Carta de 1937, que aboliu
o postulado da irretroatividade, o que permitiu, então, ao Estado
editar, sob a égide de um regime ditatorial, uma nova Lei de
Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657/42), cujo art. 6º
assim dispunha:
“Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e
geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição
expressa em contrário, as situações jurídicas
definitivamente constituídas e a execução do ato
jurídico perfeito.” (grifei)
O fato a ser destacado, neste ponto, Senhores
Ministros, considerado o fundamento da eficácia imediata das leis,
subjacente ao julgamento proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral,
é que o sempre invocado magistério de PAUL ROUBIER (“Le Droit
Transitoire”, 2ª ed., 1960) encontra insuperável limitação de ordem
jurídica no próprio sistema constitucional brasileiro, que, ao
contrário da realidade normativa vigente na França, não convive com
atos estatais, que, aplicados retroativamente (ainda que se cuide de
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retroatividade mínima), afetem as situações jurídicas
definitivamente consolidadas ou interfiram nas consequências que
delas emanaram como resultado causal necessário ou atribuam, em
caráter inovador, a fatos pretéritos já consumados no tempo, efeitos
gravosos e restritivos de direitos, notadamente de direitos
essenciais como aqueles que se contêm no conceito de liberdade-
-participação (como o direito de disputar mandatos eletivos,
p. ex.).
Impende ressaltar, bem por isso, que situações
definitivamente consolidadas, oriundas do ato jurídico perfeito (e,
também, da coisa julgada e do direito adquirido), qualificam-se como
obstáculos constitucionais invocáveis contra o Estado e plenamente
oponíveis à incidência de leis supervenientes, mesmo que estas
veiculem prescrições de ordem pública.
A realidade normativa é uma só, Senhor Presidente: mesmo
nas hipóteses de retroatividade mínima (MATOS PEIXOTO, “Limite
Temporal da Lei”, “in” RT 173/459, 468), quanto mais naquelas
hipóteses de retroatividade máxima, em que os efeitos gravosos
interferem na causa (que é um ato ou fato ocorrido no passado), esta
Suprema Corte tem advertido que, em referida situação, a interpretação
RE 631.102 / PA
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judicial que admita tal possibilidade revestir-se-á de caráter
inegavelmente retroativo (e, portanto, inconstitucional):
“Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos
celebrados anteriormente a ela, será essa lei
retroativa (retroatividade mínima) porque vai
interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no
passado.
O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição
Federal se aplica a toda e qualquer lei
infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei
de direito público e lei de direito privado, ou entre
lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente
do STF.”
(RTJ 143/724, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno - grifei)
A aplicação retroativa da norma legal em causa
(alínea “k”) – que afeta, sensivelmente, de modo direto, o “status
activae civitatis” do candidato - expõe-se à censura jurídica, como
adverte, em lição inteiramente aplicável ao caso, CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA (“Instituições de Direito Civil”, vol. I/152, item n. 32,
5ª ed., 1976, Forense):
“Onde quer que exista um direito subjetivo, de
ordem pública ou de ordem privada, oriundo de um fato
idôneo a produzi-lo segundo os preceitos da lei vigente
ao tempo em que ocorreu, e incorporado ao patrimônio
individual, a lei nova não o pode ofender.” (grifei)
Em suma: tenho para mim que se mostra plenamente
acolhível a pretensão recursal deduzida nesta causa, considerados,
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para tanto, os fundamentos concernentes, quer à violação do
princípio da anterioridade eleitoral (CF, art. 16), quer à ofensa à
cláusula de incolumidade do ato jurídico perfeito, cuja
transgressão, no caso, resultou de interpretação judicial, proferida
pelo E. Tribunal Superior Eleitoral, evidentemente lesiva ao
postulado da irretroatividade das leis (CF, art. 5º, XXXVI).
Sendo assim, em face das razões expostas e reafirmando o
voto por mim anteriormente proferido no julgamento do RE 630.147/DF,
peço vênia para conhecer e dar provimento ao presente recurso
extraordinário, assegurando, desse modo, ao candidato recorrente, o
direito ao registro de sua candidatura.
É o meu voto.
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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Íntegra do voto do ministro Celso de Mello no processo de Jader Barbalho, sobre Ficha Limpa
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